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domingo, 9 de março de 2014


Sobre as Águas


Entre tantas vias de acesso, minhas mãos auxiliam as avenidas frias que o céu protege.

Entre os mangues, praças, arranha - céus e periferias, assim sou eu ligando o seu passado e o esplendor do seu amanhã
O vento sopra sobre mim o progresso, suporto o vai e vem e o peso de suas dores, reascendo as suas mais remotas lembranças. Sim, sou eu, sou ponte.
Entre o sol escaldante e as madrugadas frias de cada dia, eu estou lá acelerando o compasso da vida no vai e vem frenético e tão solitário de quem passa.
Ah se eu pudesse, Recife, crescer contigo como cresce a esperança desse povo que tu alimentas, me alegraria ainda mais, pois só eu sei cada história de luta e dor de quem passa por mim, por que sobre mim caem lágrimas, suor e sorriso.
Tu, Recife, não serias a Veneza, nem tua cultura seria notória se por mim tua história não fosse contada, teus rios não seriam os mesmos, porque sou tua ponte entre as águas mornas do teu Capibaribe e é sobre mim, de mim e por mim que a rede é lançada em tuas águas em busca de respostas.
Tu, Recife amado, não verias o galo passar, nem esse chão tremer na multidão que a ti saúda nos carnavais da vida, pois sou eu, ponte nova – velha, o teu eu- lírico ufanista.

Até à próxima!
André Silva.

*Texto produzido para o prefácio do livro da jornalista Andreia Souza em 2004.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Emocionados com os orixás

Por Gutierres Siqueira.
Um Moisés pós-moderno escrevia sobre a emoção de ver a expressão autêntica de fé no Bezerro de Ouro
Por Gutierres Fernandes Siqueira

Nesses últimos dias li dois textos que expressam bem a decadência de uma teologia protestante com complexo sociológico.  Em ambos, por coincidência, os autores comentavam a emoção que sentiram ao ver a expressão religiosa em cultos afrobrasileiros. Para os autores, a tolerância nasce quando você chora diante do culto alheio.

E eu choro com tamanha bobagem e hipocrisia.

A tolerância pós-moderna não é apenas o respeito pelo direito de culto para todos, a liberdade cúltica. Não e não, mas vai além! Agora precisamos apreciar qualquer manifestação do sagrado. Bom, o sujeito que não suporta nem a tia e nem a colega de trabalho, agora é simplesmente capaz de se emocionar com o primeiro deus animista da moda. Pura hipocrisia, mas que pega bem em uma roda de conversas na Vila Madalena.

Se Moisés fosse pós-moderno ele escrevia um texto emocionado sobre a "experiência autêntica" de se adorar o Bezerro de Ouro? Risos e mais risos. E Jesus, quem sabe, poderia ter sido menos bruto com os fariseus e não chamá-los de "filhos do diabo". Será que Jesus não enxergava que todas as "expressões de fé" são validas e equiparáveis se feitas com sinceridade? Ora, e quem disse que os fariseus não eram sinceros?

E os profetas que combatiam Moloque? Será que eles pensavam em manifestações religiosas “sem autenticidade” ou todas as crenças eram válidas? E por que Paulo era tão preocupado com movimentos judaizantes? Não poderia ter sido mais tolerante com esse diálogo interreligioso entre judaísmo e cristianismo? Ou Paulo percebia o óbvio: quando duas visões diferentes e opostas começam um namoro, logo uma das visões precisará ceder ao ponto de perder a própria identidade. Ora, todo casamento não é a formação de uma “só carne”?

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

“Receba a porção dobrada do Espírito Santo”! Ou, veja porque essa declaração é uma bizarrice!

Elias revivendo o filho da viúva de Sarepta, por Louis Hersent [177-1860]
Por Gutierres Fernandes Siqueira

Você certamente já ouviu algum pregador pentecostal orando para que a plateia ou uma pessoa específica recebesse a “porção dobrada do Espírito Santo”. A base é 2 Reis 2, mas a interpretação é equivocada. Nesse texto, temos a história do profeta Elias designando a continuidade de seu ministério para Eliseu antes de ser transladado. Nos versículos 9 a 11 lemos:

Sucedeu, pois, que, havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja porção dobrada de teu espírito sobre mim. E disse: Coisa dura pediste; se me vires quando for tomado de ti, assim se te fará; porém, se não, não se fará. E sucedeu que, indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho.

Bom, vejamos o que a expressão “porção dobrada” significa.

1. Quando Eliseu pede a “porção dobrada”, na verdade, ele está requerendo o direito de progenitura sobre os demais profetas da escola de Elias.

Elias foi líder de uma “escola de profetas”, e Eliseu era um dos seus alunos. O ambiente da escola lembrava uma fraternidade onde os membros eram chamados de “filhos dos profetas” (v. 3,5). Ora, com a trasladação de Elias quem seria o seu substituto? Ou seja, quem havia de ser o novo líder? Então, Eliseu baseado na lei mosaica (cf. Dt 21.17) pede a Elias a “porção dobrada”, ou seja, os direitos de um filho primogênito. O primeiro filho recebia o dobro das riquezas do pai em relação aos seus irmãos, e isso implicava mais responsabilidade para a manutenção da família. Donald J. Wiseman lembra que esse filho primogênito “tinha a responsabilidade de perpetuar o nome e o trabalho do pai” [1].

Nesse sentido, a tradução da Nova Versão Internacional (NVI) traz mais luz para a interpretação: “Depois de atravessar, Elias disse a Eliseu: ‘O que posso fazer por você antes que eu seja levado para longe de você?’ Respondeu Eliseu: ‘Faze de mim o principal herdeiro de teu espírito profético’". [grifo meu].

2. A “porção dobrada”, portanto, em um primeiro momento, não significava “mais poder” para milagres. Significa, isso sim, mais responsabilidade como o novo líder a representar o legado do antigo líder. Assim, por que os pregadores atuais falam em “porção dobrada” como “poder em dobro” para milagres, mas esquecem da responsabilidade de um legado na substituição de uma liderança?

Repito: a expressão não significa, a princípio, um poder dobrado para milagres ou um ministério ainda mais poderoso em sinais e maravilhas do que o de Elias. É tão verdade que Eliseu continua o trabalho de Elias, mas não se tornou um profeta mais importante do que o seu “pai espiritual”. Ele é usado por Deus em continuidade, mas não se sobrepõe ao seu pai na fé. Quem é o profeta mais lembrado depois de Moisés na história e literatura hebraica? Elias é a resposta. Eliseu certamente pensava que a continuidade do ministério de Elias implicaria grandes sinais, mas a expressão em si não indica essa questão, mas sim o direito de substituí-lo como líder.

3. Elias não concede o pedido a Eliseu porque tal atribuição era divina, e não humana. Como os pregadores atuais podem oferecer o que não é prerrogativa deles?

Eliseu recebe a “porção dobrada” da parte de Deus, mas não de Elias. O profeta Elias mostra a Eliseu que a resposta ao pedido não dependia dele, mas sim do Senhor. “Coisa dura pediste”, diz Elias, indicando que Eliseu seria o seu substituto mediante a observação de seu arrebatamento. O teólogo pentecostal Wilf Hildebrandt escreve sobre essa passagem:

A dificuldade de honrar o pedido é demonstrada por Elias, que faz com que o direito de sucessão dependa do avistar de sua partida por parte de Eliseu. Elias indica que não é uma prerrogativa sua o responder ao pedido e sim uma prerrogativa de Deus. Assim, o pedido por “uma porção dupla” não é concedido por ele, mas depende da permissão de Iahweh para que Eliseu testemunhe sua partida e ‘abra os seus olhos’ para a seleção de Deus. Somente Deus poderia escolher um sucessor para Elias e transferir se o Espírito para o profeta escolhido.  [2]

É interessante observar que um pregador que acredita atribuir o Espírito Santo em dobro para outras pessoas não traz essa ideia da cosmovisão bíblica, mas sim de uma cosmovisão animista, portanto, pagã. É necessário rejeitar qualquer tentativa de interpretar o texto bíblico segundo padrões mágicos que arranham a correta interpretação do mesmo. Ninguém pode “jogar” o Espírito Santo em dobro no outro. O Espírito Santo enche o verdadeiro crente segundo a graça divina para o serviço do Senhor. “Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil” [1 Co 12.7].

Referências Bibliográficas:

[1] WISEMAN, Donald J. 1 e 2 Reis. Introdução e Comentário. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2006. p 172.

[2] HILDEBRANDT, Wilf. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento. 1 ed. São Paulo: Editora Academia Cristã e Edições Loyola, 2008. p 195.